Meu Mano e o Tempo

 

Não tenho medo de parecer piegas ou ridiculamente sentimental em extremo. Mesmo porque, o tempo passa tão rápido e o amor exige palavras, logo, estas, não podem morrer conosco, nem em nós.
Aliás, falando em tempo, este é sempre período contínuo onde os acontecimentos se sucedem, é duração relativa, ponto de vista epistemológico, nada de validade universal ou absoluto, como querem fazer de tudo nesse nosso louco tempo. No tempo tudo é provisório, é tudo temporalidade, passageiro.
Tempo é período específico. É resultado de conjunto de condições, infelizmente, já que por vezes, gostaríamos de segurar nas mãos o tempo, não deixá-lo ir. Mas ele é de duração cronometrada, é paradigma próprio. Nesse tempo, fazemos tudo de temporalização, transformamos tudo em transitório… os relacionamentos, casamentos, amizades. O que sobra dessa jornada no meio de tantas contradições, é essa capacidade que temos de chamar a atenção para elementos simples do cenário do cotidiano, coisinhas que o tempo não levou, detalhes definitivos, pequenas escavações num azul já meio desbotado. É assim que ele me vem à lembrança quando estou em busca de nada. Daí, ele chega perto, em forma de antologia organizada e saudosa, memórias que merecem registro.
Algo absolutamente essencial é o encontro com um verdadeiro amigo a quem se pode dizer tudo, sabendo que seremos escutados, encorajados e confirmados com um gesto de amor e uma palavra de ternura.
Sempre me lembro dele com uma escova de cabelo, batendo levemente sobre seu cabelo sempre tão bem cortado, preocupado com cada ponta de seu crespo, antes de sair do quarto e aparecer para a plateia na sala da casa de Jorge (pastor e cantor Jorge Barros) e Odília (de Paula), sua primeira esposa e que já dorme no Senhor, aguardando a ressurreição dos Santos. O café na casa de Odília e Jorge, era sempre quase na hora do almoço já que dormíamos quase pela manhã, dado os compromissos com as igrejas que nos fazia sempre chegar muito tarde em casa. Aquele quarto na casa de Odília e Jorge, era o nosso point, nosso quartel general e Odília dava as ordens.
Como ele se demorava sempre, eu o criticava apressando-o: “Imagina se esse cabelo fosse liso? Deus nos livre! Era também, uma cena digna de ser vista, o momento épico em que ele se perfumava, lustrava os sapatos e, testava a garganta cansada do culto da noite passada, para sentir como a voz lhe saía, sempre com um cuidado invejável. Esses momentos me fazia refletir, o quanto ele se elevava ao extremo de sua autoestima, sem nenhuma desigualdade, sem nenhuma dor ou espécie de racismo, mesmo o velado, tão cantado hoje em dia pelo “politicamente correto”. Naqueles dias, ele ainda bem jovenzinho e de uma pureza e santidade transparente, me lembrava um resumo muito simplista, uma música que sabia lidar com os absurdos da condição humana, tão pecadora, tão sem pureza e suas contradições psicológicas. Ele sempre se traduziu numa linguagem simples e direta, e assim se relacionava com os amigos próximos, com a família e o grande público que ele colecionava em cada compromisso com as igrejas, que cumpríamos com alegria e desprendimento, num tempo sem internet e sem videoclipe , mas como garante o REVIVA, nunca desprovido de poesia.
Certo dia, ele me confessou que saía de sua casa, ia até uma loja de discos e pedia para tocar o LP Campos Brancos, que eu acabara de gravar, e ouvindo, decorou cada música. Ele nunca usou a palavra “fã”, mas os anos que viriam, nos tornaria bem mais que isso: Fomos parceiros, amigos, irmãos.
Na melhor tradução de alguns mestres do gênero da narrativa gospel, da voz, do swingado, dos agudos e das frases interpretadas, ficou mesmo, sem pudores ou medos, nesse longo tempo, o artista publicado em blogs, um site que virou uma marca, um suplemento literário de nossa canção evangélica que, para o respeitável público é, Álvaro Tito.
Para mim, ele tinha vários codinomes. Não que eu quisesse ocultar sua forte identidade. É que, também ele , me chamava dos mais estranhos nomes.
Alguns desses nomes ele criava no momento e gargalhava até me deixar raivoso e sem paciência . Um desses surgiu do nada e acabou ficando até hoje, quando nos encontramos: “Rubrisnaldo”! Nem ele sabia ou sabe o porque. Era só pra rir.
Os nomezinhos dele eu não conto, mas eram a minha maior vingança. Mas posso contar que ele sempre tomava banho gelado, “para não ficar gripado e não perder a voz”, e queria me convencer a fazer o mesmo, enquanto ria e zombava de minha constante rinite alérgica.
Não havia ciúme ou traição, tão comum entre os chamados “artistas gospels”. Tanto que dividíamos os mesmos playbacks, estes, quase a única opção para se cantar nas igrejas, na época. É claro que havia o perigo de ocorrer disputas, ciumeiras, mas não tínhamos vontade e nem tempo para isso.
Éramos críticos um do outro e ríamos muito dos erros mútuos. Ríamos dos agudos que, por acidente saiam engasgados, das interpretações exageradas ou da voz mal colocada que resultaria numa rouquidão no dia seguinte.
Quando gravei “Cristo vem” pela Bandeira Branca, na música de Wlisses de Souza Filho, meu primo, chamada “ Sejamos gratos”, a produção não atentou para um erro de linguagem inadmissível. Onde eu deveria dizer…”pelo seu grande benefício , dado a nós pelo seu grande amor”, cantei toda a frase no plural, o que soa estranhamente, “pelos seus grandes benefícios, dados a nós pelos seus grande amor”! Isso era sempre motivo de piadas e gargalhadas entre nós dois e, por parte dele, imitações nababescas do erro, numa comicidade fantástica. Acredite, não me incomodava. Só me fazia rir, já que eu também achava motivos para rir dele.
Quando fui produzir o LP “Dai louvor ao Rei”, ele me trouxe o seu maior trunfo, o seu compositor preferido, Elvis Tavares, que iriam escrever a história de uma música, juntos, compositor e intérprete. Ele conseguiu que Elvis me escrevesse “Mais além”, e me convenceu a cantá-la num reggae, em um tempo difícil para a ousadia na música evangélica no Brasil.
Anos mais tarde, ele produziu para mim, o lp ‘Mais”, com músicas de Edson Coelho, e outras dele mesmo, como, “sal e luz”, “A alegria chegou” e outras. A importância desse trabalho, não se deve apenas às assinaturas de dois gigantes da música evangélica, Edison Coelho e Álvaro Tito, mas ele marca o fim de uma era, o fim do LP, já que é uma das últimas remessas de produção e a introdução do CD no mercado fonográfico. Durante a produção, ele mandou apagar as luzes do estúdio, numa madrugada cansativa e me ordenou “cantar na penumbra para sentir melhor o clima”! Rimos muito, mas obedecemos. Até hoje, minha esposa o chama de “penumbra”.
A arte de Álvaro Tito se eternizou com essa capacidade de chamar a atenção para elementos simples do cenário cristão, do cotidiano, cheia de opções vocais e de intensa carga espiritual. Sua música funcionou, já em um tempo em que, qualquer cantor evangélico, que cantasse fora de um padrão previamente estabelecido pelo sistema, não somente cristão mas também comercial, não seria bem visto ou aceito.
Mas ele, sempre foi um visionário, sempre à frente de seu tempo e sem medo de críticas e sem amarras. Isso o fez definitivo e abriu portas para outros atrevidos sonhadores, pesquisadores e intérpretes da nossa música evangélica.
Ele fez o tempo avançar e depois parar para ele poder entrar. Com sua arte, chegou, meteu o pé na porta do tempo e entrou sem pedir licença, desafiando os prognósticos.
Esse é o meu mano. O “mais preto” (ops… falei!) fez e faz escola.

Ronaldo Reis | Cantor e Pastor

3 thoughts on “Meu Mano e o Tempo

  • 02/04/2020 em 13:05
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    Minha alegria foi imensa ao reencontrar Ronaldo Reis, extremamente envolvido com suas obras de assistência social no sul, mas graças a Deus que o despertou para o regresso de seu ministério musical. Mas Deus na sua infinita benção agora nos abençoou com sua escrita que nos obriga a focar nela. Hipnotizados a entender sua mensagem , sua escrita é ciumenta e não nos permite dividir com nenhuma outra tarefa.
    Belo texto, envolvente , chega a tirar risos de nossos lábios e revela uma grande amizade construída no seu dia a dia.

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  • 03/04/2020 em 10:15
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    Este é o grande Ronaldo Reis contando uma história no mínimo curiosa de dois irmãos que tinha uma sintonia maravilhosa!
    Tendo sido criados por famílias diferentes, mas com objetivos iguais. É o que nós passa o texto mui bem escrito! Acreditamos que este tipo de amizade é um pouco mais difícil nos dias de hoje, porém somos esperançosos Parabéns Ronaldo!

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  • 05/04/2020 em 17:18
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    Fiquei lendo aqui toda esta história do mano Álvaro Tito e veio a minha memória as cenas vividas naquela casa que eu bem conhecia.
    Foi maravilhoso recordar de tempos passados e de algumas histórias que eu própria vivi ali. Era criança e sempre era muito divertido.
    Parabéns pela escrita perfeita e pela bela história contada.
    No aguardo do seu próximo post…

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